Saúde pública no Rio sofre com superlotação e negligência
O Estado de S. Paulo
Saúde pública no Rio sofre com superlotação e negligênciaTrês anos após intervenção federal e de decreto de calamidade, não revogado, pacientes reclamam de situação caóticaPassaram-se quase três anos da intervenção federal e da decretação de calamidade pública nos hospitais do Rio, mas os problemas ainda se repetem. Para pacientes ouvidos pelo Estado, a situação continua a mesma, talvez pior. Cerca de 60% dos médicos aprovados em concurso público da prefeitura em 2001 abandonaram seus postos e hoje a rede convive com cenas de superlotação e abandono.Imagens que o carioca - pelo menos aquele que não pode contar com um plano de saúde - já se acostumou a ver. Um exemplo de por que o decreto de calamidade pública continua em vigor é o Hospital Estadual Rocha Faria, em Campo Grande, na zona oeste do Rio. A constante falta de materiais hospitalares básicos leva a improvisações que podem colocar em risco a saúde dos pacientes. No lugar de coletores de urina para os internos da sala de atendimento masculina, foram usadas garrafas Pet de refrigerante e água mineral. Médicos do hospital contam que a improvisação costuma ser com tubos de soro esterilizados, mas, no fim de novembro, nem esse material estava disponível. As imagens do uso de garrafas foram feitas há pouco mais de uma semana e, na segunda-feira, a reportagem foi até o local conferir a situação.Naquele mesmo dia, as garrafas foram substituídas pelos coletores recém-chegados. Para o superintendente da rede de hospitais estaduais, Carlos Edson da Silva, nada justifica o uso das garrafas Pet no lugar de coletores de urina. "Na falta dos coletores, existem outros materiais para substituir, como dreno de tórax, por exemplo", diz.Segundo Silva, uma sindicância será aberta para investigar o caso. "Se alguém fez isso com boas intenções, é no mínimo negligente", afirma. Às 22 horas daquela mesma noite, uma mulher - que prefere não se identificar - reclamava o corpo da mãe no guichê de atendimento, do lado de fora do hospital. Segundo ela, a mãe havia morrido às 11 horas. Na porta do pronto-socorro, a fila era controlada por um segurança.Em meio às reclamações pela demora no atendimento, havia quem se consolasse achando que nos fins de semana é ainda pior. Um deles é o segurança André Barreiros, de 33 anos. Grávida de três meses, sua mulher, Raísa Marques, de 18 anos, reclama de dores na barriga. É a segunda vez que procuram atendimento ali. Na primeira, conseguiram fazer uma ultra-sonografia e mais nada. BARATASDo lado de dentro, a situação é ainda pior. Há seis meses, o tomógrafo não funciona, faltam funcionários para atender à enorme demanda que se forma na porta do pronto-socorro. Os pacientes se acotovelam em uma apertada sala de espera, enquanto outros passam mal. Em frente da sala de trauma, para onde são levados os casos mais graves, baratas circulam pelo corredor sob o olhar dos funcionários. Algumas enfermeiras olham com nojo, outras simplesmente cortam caminho, até que uma faxineira resolve dar fim aos insetos. Outros aparecem.Em menos de 50 minutos, nove baratas saem do arsenal, local em que medicamentos e insumos são armazenados. Ali, já passaram por cima de tudo, caixas de algodão, gaze e seringas. Atravessaram o corredor, entraram na sala de trauma, subiram pelas paredes, se esconderam debaixo das camas e nos cantos da sala. Ao notar a presença do fotógrafo, uma auxiliar de enfermagem grita: "filma mesmo que isso aqui é um absurdo." E complementa: "Ganho menos de R$ 500 e não é para matar barata."Enquanto isso, Raísa continua aguardando um médico. A noite irá terminar e ela voltará para casa sem ser medicada. "Não fizeram nada, cheguei chorando de dor e nem uma injeção me deram", diz. "Não tenho plano de saúde e vou fazer o quê?", pergunta. Para o presidente do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro, Jorge Darze, a situação é apenas uma pequena mostra da situação da saúde no Estado. "O governo federal resolveu devolver a autonomia administrativa para os hospitais do Rio, o que foi um erro", diz. "Essa foi uma postura equivocada pois incentivou a má gestão."A despeito da situação, a Superintendência de Vigilância da Saúde visitou o hospital na sexta-feira e produziu um relatório sobre as condições sanitárias do Rocha Faria. De acordo com o documento, não foram identificados vestígios de roedores, mosquitos, moscas, aranhas, baratas ou formigas. Mesmo assim, o superintendente da rede de hospitais estaduais informou que o hospital será dedetizado.O subsecretário de Atenção à Saúde do Estado, Carlos Armando do Nascimento, afirma que o desabastecimento de insumos é um problema pontual. "Tivemos um problema muito grande de abastecimento há alguns meses, mas agora estamos próximos do ótimo", diz ele. "Ótimo será quando estivermos com 100% de abastecimento." De acordo com Nascimento, o problema do tomógrafo deve ser resolvido em breve. Cinco aparelhos foram comprados e serão instalados em hospitais "que estão sem ou com o aparelho em estado precário", garantiu. FALTA DE PROFISSIONAISNo Rio, os problemas não são exclusividade da rede estadual. Hospitais municipais como o Salgado Filho e o Souza Aguiar (que tem 500 leitos) enfrentam problemas sérios de superlotação e falta de profissionais. No caso do primeiro, com 322 leitos, um mandado de segurança de 2006 obriga a direção e a secretaria municipal de Saúde a garantir número mínimo de profissionais para o funcionamento do setor de emergência, com fornecimento de medicamentos e insumos indispensáveis ao atendimento dos pacientes. De acordo com o próprio diretor do Salgado Filho, Yvo Perrone, o hospital tem hoje um déficit de clínicos gerais. "Temos deficiência nessa área, tenho de três a quatro clínicos por plantão e precisaria ter sete", diz. Médicos do hospital, no entanto, afirmam que por vezes o plantão tem apenas um clínico.Na Unidade para Pacientes Graves (UPG) - uma verdadeira Unidade de Terapia Intensiva (UTI) dentro do pronto-socorro - existem médicos intensivistas apenas até as 13 horas. Depois disso, um médico do plantão tem de ser deslocado para atender a eventuais emergências no local. Nas unidades de observação masculina e feminina, onde deveria haver 14 leitos, cerca de 50 pacientes ocupam o espaço. "Os hospitais do Estado são muito ruins e infelizmente recebemos pacientes de todos os lugares", diz Perrone. A mesma opinião parece ter o prefeito César Maia. Ele credita a sobrecarga dos hospitais municipais ao mau funcionamento dos hospitais estaduais e federais. "Temos uma sobrecarga pelo não funcionamento das redes estadual, federal e municipais. (A rede) Federal fechou a emergência do Fundão e agora de Bonsucesso. Estado fechou o Caju e a neurocirurgia de Rocha Faria, e, só agora, depois de anos, diz que vai construir a CTI do Alberto Schweitzer", diz. " As filas do Into e do Inca são de meses, o que empurra cirurgias programáveis para nossa rede de emergência."Foi justamente esse tipo de atendimento que levou o técnico em eletrônica autônomo Waldecir Sebastião Avelino, de 40 anos, a procurar na quarta-feira o Hospital Souza Aguiar, da rede municipal. Com a rótula do joelho direito quebrada desde o final da semana passada, Avelino chegou ali após passar por outros quatro hospitais. No primeiro, Juscelino Kubitschek, também municipal, conseguiu o primeiro atendimento. No entanto, precisa de uma cirurgia de reparação. No Souza Aguiar, assim como nos outros, foi informado de que não poderia ser atendido. Anteontem, conseguiu ser encaminhado para o Hospital Municipal Barata Ribeiro, mas será atendido somente na quarta-feira. "Isso é um absurdo, não sei que rumo tomar", desabafa.‘ESTAMOS CONTROLANDO’ Para Josué Kardec, diretor do Souza Aguiar, o fato de o hospital atender a especialidades que outras instituições não têm, como oftalmologia, gera a enorme procura. O diretor, no entanto, nega que exista superlotação ou problemas de higiene no local. Na semana passada, três pacientes colonizados com a bactéria Enterococcus faecium resistente a antibióticos foram diagnosticados no CTI do hospital. "Ninguém recomendou a interdição do CTI. Estamos controlando. Os funcionários utilizam luvas, máscaras, as roupas de cama não são jogadas no chão", explica. Para Jacob Klingerman, secretário municipal de Saúde, os hospitais de sua rede estão longe do estado de calamidade pública. Assim como o prefeito César Maia, ele culpa a ineficiência das outras redes pela superlotação. "Os hospitais estaduais estão praticamente sucateados", afirma. De acordo com Mário Bueno, diretor do departamento de Gestão Hospitalar do Ministério da Saúde, o estado de calamidade pública ajudou o governo federal a reestruturar a rede no Estado. Quando o decreto será revogado? Ele não se arrisca a prever. Enquanto isso, Raísa, que anteontem procurou novamente o Hospital Rocha Faria, já sabe o que fazer. "Vou para Cabo Frio ficar na casa de minha mãe e procurar um hospital por lá. Aqui não tem jeito", diz.
Emilio Sant’Anna
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